Por Francisco Satiro
A Lei nº 11.101, de 2005, que trata da falência e recuperação de empresas, completará uma década de vigência no próximo ano. Isso significa que seus dispositivos estão pacificados e que é possível antever com segurança suas respostas aos problemas do dia a dia da empresa em crise? Certamente não. Como dizia o jurista e filósofo alemão Rudolph von Jhering no livro "A luta pelo direito" - que é até hoje leitura obrigatória para os estudantes -, o direito não é como o idioma, que vai-se alterando natural e imperceptivelmente com a adoção corriqueira de novas expressões ou estruturas e desuso de outras, mas é fruto do fervoroso embate entre o que está consolidado e o que deveria ser, entre o status quo e o idealizado, num movimento perene de autorenovação.
Assim se dá com o problema dos garantidores pessoais dos débitos daquele que pede recuperação judicial. A lei determina que com o deferimento do processamento do pedido de recuperação judicial pelo juiz sejam suspensas pelo prazo de 180 dias as ações e execuções movidas contra a devedora. A suspensão tem objetivo claro: dar à devedora um período de estabilidade para que se dedique a preparar um plano de recuperação e convencer os credores a aprová-lo em assembleia, sob pena de ter sua falência decretada. Uma vez aprovado o plano, o juiz deve homologá-lo para que as obrigações originais sejam substituídas por sua nova versão (que pode representar prorrogação de vencimento, desconto, parcelamento etc), no que o direito chama de "novação"- cria-se uma nova obrigação com o intuito de extinguir a anterior.
O problema está no tratamento dos coobrigados, aqueles que se comprometeram pessoalmente, junto ao credor, a saldar a obrigação da devedora. São os avalistas, os fiadores e os demais coobrigados, tão comuns na vida empresarial. Se o devedor não precisa pagar sua obrigação porque foi suspensa por 180 dias, ou porque foi "novada" - substituída por outra - poderia o credor buscar satisfazer o seu crédito nos termos originais executando diretamente garantidores? Em outras palavras, se o "devedor principal" não pode ser cobrado porque as execuções estão suspensas ou porque pelo plano aprovado seu vencimento prorrogou-se por anos e estará submetido a desconto, pode o pagamento integral e imediato do débito ser exigido do fiador, do avalista ou do coobrigado, com base na obrigação original?
A fiança não se extingue com o processamento da recuperação judicial ou a homologação do plano
A Lei nº 11.101, em seus artigos 49, parágrafos 1º e 59, assegura aos credores antes e depois da homologação do plano de recuperação judicial aprovado em assembleia-geral de credores, a "conservação de seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso".
Diante dos inúmeros casos de avais - principalmente entre empresas do mesmo grupo econômico e de sócios ou administradores -, a jurisprudência fixou entendimento de que o avalista poderia sim ser cobrado imediatamente pelo valor total do débito avalizado, ainda que a obrigação original tivesse sido suspensa ou alterada pelo plano.
Boa parte da doutrina passou então a defender a aplicação da solução pacificada no caso de aval a todas as situações de garantia pessoal. O problema é que a situação paradigma - do avalista - é excepcional. O regime do aval, garantia fidejussória (pessoal) aplica-se somente para títulos de crédito, que se submetem à logica cambiária. No aval, negócio jurídico unilateral, a obrigação do avalista constante no título de crédito, é plenamente "autônoma" em relação à obrigação garantida. Os vícios ou nulidades desta, em regra, não a contaminam. E o avalista é obrigado solidariamente com o avalizado, ou seja, o credor pode cobrar do avalista mesmo antes do avalizado - não há "benefício de ordem". Como a obrigação do avalista é autônoma, faz sentido reconhecer que o credor da devedora em recuperação judicial possa cobrá-la mesmo em caso de novação ou no período de suspensão de 180 dias. Afinal, em qualquer hipótese, a alteração da obrigação principal não afeta a garantia - autônoma - do avalista.
Mas esse não é o caso das demais garantias pessoais, especialmente a fiança. Fiança é negócio jurídico bilateral por meio do qual o fiador garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor (afiançado), caso este não a cumpra. A obrigação do fiador é "acessória" à obrigação principal do afiançado. Como aponta o corolário lógico da acessoriedade: o acessório segue a sorte do principal. Disso decorre que a existência da fiança depende da existência da obrigação garantida, a invalidade da obrigação garantida afeta a fiança (salvo caso de incapacidade), e a exigibilidade da fiança depende da exigibilidade da obrigação garantida. Além disso, o fiador pode exigir que o patrimônio do devedor seja esgotado antes de responder pelo débito, salvo em caso de renúncia ao benefício de ordem.
Aplicar automaticamente à fiança as mesmas soluções atribuídas ao aval é incoerente e, acima de tudo, incorreto. Garantir o direito do credor contra o fiador da devedora em recuperação judicial não significa aplicar-lhe o mesmo tratamento dado ao aval. Quando a Lei nº 11.101 prevê que as garantias "permanecerão" mesmo em caso de suspensão ou novação nada indica que se manterão "nos mesmos parâmetros e condições" originalmente contratado. Quanto ao aval, essa consequência advém não da Lei nº 11.101, mas da natureza cambiária (e autônoma) da obrigação do avalista. Mas fiança não é autônoma, é acessória. Nem se poderia interpretar os dispositivos da Lei nº 11.101 no sentido de, implicitamente, alterar a própria natureza do instituto. Seu caráter acessório permanece, e o que se excepciona é somente a regra segundo a qual a novação da obrigação significa a extinção da garantia.
A fiança, então, não se extingue com o processamento da recuperação judicial ou a homologação do plano (e a novação dela decorrente). Mas, como acessória que é, tem seu conteúdo e exigibilidade vinculados ao conteúdo e exigibilidade da obrigação principal: o fiador continua obrigado na exata medida dos novos termos da obrigação afiançada, retornando aos originais em caso de convolação da recuperação judicial em falência, nos termos do artigo 61, parágrafo 2º da Lei 11.101.
Francisco Satiro é professor de direito empresarial da FGV Direito SP e diretor do IBR - Instituto Brasileiro de Estudos de Recuperação de Empresas
Fonte: Valor Econômico S.A.
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